quarta-feira, 7 de março de 2012

O marketing de bajulação.

De todas as pragas que assolam o mundo, a mais danosa para o ser humano e todas as suas conquistas, a mais prejudicial para a paz na terra e o maior desafio para a ciência não é o gafanhoto, a traça, o spam ou a dupla sertaneja. É o bajulador.

Essa racinha miserável e sem mãe nasce em casulos pendurados nas protuberâncias que ficam abaixo da cintura de empresários, magnatas, milionários, líderes políticos, artistas de televisão e, claro, publicitários famosos.

Os bajuladores, espécie da família dos Adulatoris Babaovis, há tempos foram abandonados pelas propriedades cognitivas e neurológicas. E agora andam por aí à espreita, em busca de novas vítimas que serão obrigadas a se equilibrar em chão lambido e suportar toda sorte de mesuras falsas e servilismos.

Nas agências de propaganda, os servilões estão sempre no mesmo lugar: exatamente onde estiver o chefe, esperando para fazer uma lisonja. É gente de criação, mídia, produção gráfica, planejamento e outras áreas. Só o atendimento não é puxa-saco. Quem não acredita comete uma dessas injustiças tão comuns da vida. O atendimento pertence a outra categoria: a dos puxa-sacos dos puxa-sacos.

Subservientes por desgraça da natureza, os escova-botas são aqueles que elogiam toda e qualquer porcaria que os diretores de criação produzem em dias menos inspirados. O sujeito nem termina a peça e já tem uma orelha em pé ali, pronta para despejar-lhe um balde de baba.

– Genial! Que inteligência! Você é o máximo!

O pior é que o assédio provoca na vítima os mais baixos instintos. Ele até reluta, tenta, segura, morde a língua. Mas a empáfia passa a rasteira na modéstia e levanta os braços, vitoriosa:

– Você acha? Imagina! É a minha geração. Pertenço a uma casta de criativos que se alfabetizou nos anuários de propaganda. Rá rá rá!

Quando a conversa engata, embrulha o estômago até do porteiro mais surdo.

– Adorei aquela piada suja e pesada que você contou!
– Qual? A do elefante que caiu na lama?
– Essa! Genial! Não conhecia. É nova, né?
– É. Eu sou assim mesmo.
– Procura se superar sempre?
– Não. Sujo e pesado!

E a gargalhada ecoa pelos arredores, matando os pernilongos a quilômetros de distância.

Nas festas do mercado, os aduladores ajoelham para sair nas fotos com os patrões. Depois publicam as imagens no Facebook com legendas elogiosas e cheias de gratidão. Aí a agência perde um cliente, o chefe esculhamba a equipe inteira e sabe o que acontece? Os mesureiros pegam a foto e correm até a primeira macumbeira formada pela internet.

– É esse aqui, mainha.
– Deixa comigo.
– Bota esse lazarento na boca do sapo, minha mãe, bota.

No fundo, a alegria de todo lisonjeiro é assistir à penúria do lisonjeado. O puxa-saco quer mesmo é puxar o tapete de seu herói. Quer sentir o maior dó quando ele cai doente. Quer chorar no enterro de quem ele tanto admira. Mas enquanto isso não acontece, vai destilando seu açúcar.

Há profissionais de propaganda que não podem se movimentar na cadeira sem esbarrar nos cuidados de um intrépido puxa-saco.

– Majestade chamou?
– Não. Isso foi um pum.

E se o movimento resultar em um deslocamento da sala, piorou.

– Posso ajudar, alteza?
– Não. Estou indisposto. Vou ao banheiro.
– E o magnânimo precisa de ajuda para limpar o popô?
– Não, obrigado.
– Nem aceita um refresco de limão com bastante açúcar?
– Também não.
– A gargantinha de vossa grandeza não está seca, não?
– Não.
– Mas eu vou trazer o refresco assim mesmo. O senhor usa para lavar o cabelo. Fortalece a raiz.

Até que uma hora o elogiado acredita que é mesmo uma pessoa especial e deixa de se superar, começa a se repetir, se acomoda – afinal, tanta gente diz que ele é bonito, rico, esperto, gostoso – e cai no buraco.

Os bajuladores comemoram o fracasso de quem idolatravam e, na manhã seguinte, começam tudo de novo.

– Está bonito hoje, hein, chefe!
– É.
– Tá comendo o que aí? Lasquinha de gengibre torrada?
– Não. Casquinha de nariz. Quer?
– Quero!

segunda-feira, 5 de março de 2012

O ataque à terra das mexericas.

Feira Livre era uma aldeia politicamente correta. As pessoas viviam no interior de pimentões vermelhos de arquitetura perfeita e confortáveis divisões internas. Em Feira Livre, todo cidadão tinha direito a seu pimentão e a um suprimento mensal de vermes e pequenos animais. Todo mundo vivia bem, cuidando do que era seu.

A sociedade de Feira Livre era organizada, a moral era sólida e as leis eram severas. Deixar a torneira dormir pingando era um crime inafiançável. Fumar em praça pública obrigava muita gente a cumprir a pena de prestar serviços comunitários na aldeia. Elogiar as moças que usam presilha verde nos cabelos significava cometer discriminação imperdoável. E para aqueles afeitos a liberar os gases intestinais em salas de reunião, elevadores e lojas de vinho, a pena mais branda era decepar-lhes a mão.

Como costuma se dar entre os politicamente corretos, em Feira Livre ninguém falava mal dos outros no meio da rua. Para jogar conversa fora, só em saquinhos de lixo reciclável. A única política praticada pelo governo era a da boa vizinhança. Cada família em seu pimentão.

No interior de um jardim de melancias funcionava o Palácio do Governo de Feira Livre. Bem ao lado da horta dos abacaxis em que haviam se instalado as secretarias de Estado e dos cachos de banana em que se escondiam os congressistas.

E como toda aldeia politicamente correta, o governo de Feira Livre fazia campanhas de conscientização. Não fume! Nunca peide na presença de outrem! Diga não ao preconceito! Defenda as lagartixas do rabo roxo! Com a ajuda de trocadilhos criados por suas agências de propaganda, que existiam entre os gomos de grandes mexericas, a população de Feira Livre aprendia a ser ainda mais boazinha.

As empresas de Feira Livre eram sediadas no interior de grandes jacas. Bojudas, pesadas. Para romper a casca da jaca e conseguir um lugar entre os apertados gomos adocicados da fruta, só na faca. Vez ou outra, uma empresa caía do galho e se espatifava no chão. Sem nada saber da vida senão cumprir as tarefas ditadas por um nódulo melado com cargo de gestor, os funcionários da jaca despencada morriam secos no solo, pisoteados sob os cascos dos burros.

Em suas campanhas de comunicação internas, as empresas de Feira Livre incentivavam a economia de papel higiênico e a impressão nos dois lados da folha de papel. Mas, ao mesmo tempo, continuavam a engordar suas despesas com regalias supérfluas aos diretores. Motoristas particulares registrados em carteira, seções de massagem coordenadas por dançarinas importadas da Tailândia. Até o peso se tornar insustentável e a jaca cair do galho para a morte.

Quando a última delas teve seu cabo decepado pela foice fria da dama peremptória, o chefe de uma terrível e faminta praga saltadora que passava por ali ouviu o estouro contra o chão e deflagrou o apocalipse.

- Comida!

Em um dia inteiro de destruição, os gafanhotos devoraram pimentões, jacas, abacaxis e melancias com a fúria dos cães mais raivosos. O "salve-se quem puder" virou orientação política.

As únicas frutas preservadas pelos famigerados insetos foram as mexericas onde havia as agências de publicidade. Primeiro porque o enxame não se interessou pela aparência azeda revelada nas cascas finas e amarelecidas das mexericas. Depois, porque as agências estavam sempre de portas fechadas para o mundo e sequer perceberam a nuvem de destruição lá fora.

Os publicitários só deram conta do ocorrido quando o telefone da pizzaria insistiu em não atender. Apontaram o nariz nas janelas das agências e encontraram multidões de desesperados querendo entrar a qualquer custo. Melhor seria manter as portas trancadas. Até os gafanhotos terminarem de comer os sobreviventes.

- Quem foi que deixou o vaso da privada levantado? – perguntou um diretor de criação a seus criativos.

Era o sinal de que melhor seria voltar ao trabalho. Sem reclamar.

Afinal, Feira Livre era uma aldeia politicamente correta. Lá, todo mundo vivia bem. Cuidando do que era seu.

quinta-feira, 1 de março de 2012

A imagem do publicitário santo.

Tarde da madrugada na pequena agência, naquelas horas em que o sujeito já não sabe se é melhor ir embora ou dormir ali mesmo para adiantar os jobs da manhã seguinte, um diretor de arte foi até a copa ver se tinha sobrado uma fatia da pizza daquela noite. Abriu a caixeta achatada de papelão e só encontrou uma azeitona murcha. Serviu.

Quase dormindo em pé, ele ficou ali, empurrando o caroço com a língua de um lado para o outro da boca, até parar os olhos sobre aquilo que quase o matou de susto.

– Meu Deus do céu! – gritou perplexo.

O berro atravessou as salas derrubando tudo como bronca de patrão, e a meia dúzia de almas que restava na agência correu até a copa e encontrou o criativo pálido, estarrecido, caído sobre os joelhos. Com as mãos entrelaçadas na altura do peito, ele olhava fixamente para a caixa da pizza.

– Que aconteceu, Coruja?

Estava mudo, o coitado.

– Fala, pô!
– Coruja, não assusta a gente, bicho!

Coruja abriu a boca e babou um caroço de azeitona.

– Viram... na caixa? – perguntou com uma voz trêmula, irreconhecível.
– Que é que tem, Coruja?
– Na tampa. Na tampa!

Em dois segundos, os criativos estavam todos de joelhos.

– Nossa Senhora!
– Mais pode Deus!
– É um milagre!

Na parte interna da tampa da caixa da pizza, estampada misteriosamente pela gordura do queijo, estava a causa do espanto: uma inexplicável imagem do Washington Olivetto.

Os primeiros curiosos chegaram minutos depois para ver o portento. Aquela imagem só podia ser um recado divino! A novidade correu solta no mercado e agora mais e mais pessoas surgem do nada para ver isso de perto.

– Faz um pedido pra imagem, boba! – sugeriu a moça da faxina à recepcionista da agência, que estudava propaganda e havia meses esperava uma vaga de estágio na criação.

Religiosa, ela pediu em voz alta:

– Eu quero o meu estágio agora!

No instante seguinte, tocou o telefone. Era o Eunuco, estagiário vitalício, avisando que tinha quebrado a perna e sairia em licença médica. Sua substituta seria a recepcionista.

– Milagre! Viva Santo Olivetto!

É claro que uma notícia dessa tinha que parar na imprensa e virar comoção nacional. Resultado: romarias não param de chegar à agência a qualquer hora do dia e da noite. Filas imensas, organizadas pela polícia e por publicitários desempregados voluntários, dão várias voltas no quarteirão.

No jornal das oito, entrevistas com romeiros e fiéis chamam a atenção dos telespectadores mais incrédulos.

– Eu fiz uma promessa para a imagem da caixa da pizza e fui atendido.
– E o que você pediu?
– Pedi para mostrar minha pasta ao Rui Branquinho!

Os depoimentos aparecem de todos os cantos.

"Ganhei um aumento de cem reais e ninguém me pediu pra chegar mais cedo."
"Saí da agência às sete horas da noite em ponto."
"Devolveram minha caneta."
"Minha tia parou de beber!"
“Saí do armário e meu pai achou ótimo.”

Especialistas estrangeiros, atraídos pelo fenômeno paranormal, desembarcaram por aqui para fazer uma série de análises e descobrir os fundamentos da manifestação misteriosa. Até agora, nada constataram. Exceto o fato de que as faculdades de propaganda bateram novos recordes de procura por vagas, o mercado de souvenires decolou com a venda de camisetas de Santo Olivetto e o patrão do Coruja vai ganhar a maior grana cobrando entrada dos fiéis que querem ver a imagem.

Enquanto isso, em algum bar da cidade, dois diretores de criação desaforados procuram a pulga que fica atrás da orelha.

– Será que é o fim do mundo?
– Nada! Isso é mais uma do Washington. Não conhece a peça? Se ele fosse milagreiro mesmo, o Corinthians já tinha vencido a Libertadores.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Um portfólio para Deus e o mundo.

O sujeito ganhou um prêmio de propaganda que ninguém conhece e resolveu pedir um aumento no salário.

– Não rola – respondeu o chefe.
– Mas eu ganhei um prêmio!
– Parabéns.

Nada feito. A agência acabara de perder clientes, inclusive o do anúncio premiado. Não era hora de aumentar o salário de ninguém.

O rapaz ficou chateado. Doído na alma. Assim que surgisse outro trabalho, pediria demissão. E enviou seu portfólio a Deus e o mundo. Separou peças, mandou por e-mail, agendou entrevistas.

O mundo não deu a mínima. Já o Todo Poderoso...

À noite, ouviu baterem à sua porta.

– Quem é?
– Sou Eu.
– Eu quem?
– Seu Pai.
– Papai? Mas que vozeirão é esse?

E o Criador viu que era bom não exigir muito da perspicácia da criatura. Num estalo, tomou forma no interior da casa do sujeito.

– Meu Deus do Céu!
– Eu mesmo.
– Mas a que devo a honra?
– Eu é que pergunto. Você não me enviou seu portfólio?
– Foi! Mandei para o Senhor e para o mundo.
– Então. Vim ver se Eu posso ajudar. O que você procura, meu Filho?
– Bem, eu quero trabalhar em uma grande agência que respeite o meu talento criativo.
– Sei.
– E que aumente o meu salário com mais frequência.
– De quanto em quanto tempo?
– Reajustes trimestrais já são suficientes.
– Entendo.
– E que nessa agência ninguém brigue para entrar na ficha técnica. E que eu só precise trabalhar até tarde uma vez por mês e nunca me sinta sob pressão e que ninguém, mas ninguém mesmo, questione o que eu criar. Acho que é só isso.
– E você não quer também a Marjorie Estiano e a Paola Oliveira de estagiárias da criação? As duas apaixonadas por você?
– Pode ser.

O Criador soltou uma gargalhada que fez o sol nascer às onze e meia da noite.

– Meu filho, ouça bem uma coisa. Esse seu portfólio não ajuda.
– Como assim, Senhor?
– Com essas peças que você tem aí, é mais fácil contratarem uma máquina copiadora.
– Mas eu ganhei um prêmio!
– Parabéns. Você chupou direitinho o trabalho dos outros. Mas é um criativo medíocre. Vou lhe dar um conselho: mude de área. Já tentou o departamento comercial?

Inconsolável, o criativo caiu no choro e comoveu o Criador. E em sua infinita bondade, Ele resolveu conceder-lhe um milagre.

– Meu filho, se você esquecer esse negócio de mudar de agência, pode fazer qualquer outro pedido e eu lhe darei.
– De verdade?
– Claro. Pode pedir.
– Já sei! Será que o Senhor pode fazer o pessoal do atendimento escrever um briefing de meia página sem cinquenta erros de português?

O Todo Poderoso pensou alguns instantes e respondeu:

– Meu filho, sabe essa grande agência em que você gostaria de trabalhar?
– Sei.
– Você pode começar quando?