segunda-feira, 5 de março de 2012

O ataque à terra das mexericas.

Feira Livre era uma aldeia politicamente correta. As pessoas viviam no interior de pimentões vermelhos de arquitetura perfeita e confortáveis divisões internas. Em Feira Livre, todo cidadão tinha direito a seu pimentão e a um suprimento mensal de vermes e pequenos animais. Todo mundo vivia bem, cuidando do que era seu.

A sociedade de Feira Livre era organizada, a moral era sólida e as leis eram severas. Deixar a torneira dormir pingando era um crime inafiançável. Fumar em praça pública obrigava muita gente a cumprir a pena de prestar serviços comunitários na aldeia. Elogiar as moças que usam presilha verde nos cabelos significava cometer discriminação imperdoável. E para aqueles afeitos a liberar os gases intestinais em salas de reunião, elevadores e lojas de vinho, a pena mais branda era decepar-lhes a mão.

Como costuma se dar entre os politicamente corretos, em Feira Livre ninguém falava mal dos outros no meio da rua. Para jogar conversa fora, só em saquinhos de lixo reciclável. A única política praticada pelo governo era a da boa vizinhança. Cada família em seu pimentão.

No interior de um jardim de melancias funcionava o Palácio do Governo de Feira Livre. Bem ao lado da horta dos abacaxis em que haviam se instalado as secretarias de Estado e dos cachos de banana em que se escondiam os congressistas.

E como toda aldeia politicamente correta, o governo de Feira Livre fazia campanhas de conscientização. Não fume! Nunca peide na presença de outrem! Diga não ao preconceito! Defenda as lagartixas do rabo roxo! Com a ajuda de trocadilhos criados por suas agências de propaganda, que existiam entre os gomos de grandes mexericas, a população de Feira Livre aprendia a ser ainda mais boazinha.

As empresas de Feira Livre eram sediadas no interior de grandes jacas. Bojudas, pesadas. Para romper a casca da jaca e conseguir um lugar entre os apertados gomos adocicados da fruta, só na faca. Vez ou outra, uma empresa caía do galho e se espatifava no chão. Sem nada saber da vida senão cumprir as tarefas ditadas por um nódulo melado com cargo de gestor, os funcionários da jaca despencada morriam secos no solo, pisoteados sob os cascos dos burros.

Em suas campanhas de comunicação internas, as empresas de Feira Livre incentivavam a economia de papel higiênico e a impressão nos dois lados da folha de papel. Mas, ao mesmo tempo, continuavam a engordar suas despesas com regalias supérfluas aos diretores. Motoristas particulares registrados em carteira, seções de massagem coordenadas por dançarinas importadas da Tailândia. Até o peso se tornar insustentável e a jaca cair do galho para a morte.

Quando a última delas teve seu cabo decepado pela foice fria da dama peremptória, o chefe de uma terrível e faminta praga saltadora que passava por ali ouviu o estouro contra o chão e deflagrou o apocalipse.

- Comida!

Em um dia inteiro de destruição, os gafanhotos devoraram pimentões, jacas, abacaxis e melancias com a fúria dos cães mais raivosos. O "salve-se quem puder" virou orientação política.

As únicas frutas preservadas pelos famigerados insetos foram as mexericas onde havia as agências de publicidade. Primeiro porque o enxame não se interessou pela aparência azeda revelada nas cascas finas e amarelecidas das mexericas. Depois, porque as agências estavam sempre de portas fechadas para o mundo e sequer perceberam a nuvem de destruição lá fora.

Os publicitários só deram conta do ocorrido quando o telefone da pizzaria insistiu em não atender. Apontaram o nariz nas janelas das agências e encontraram multidões de desesperados querendo entrar a qualquer custo. Melhor seria manter as portas trancadas. Até os gafanhotos terminarem de comer os sobreviventes.

- Quem foi que deixou o vaso da privada levantado? – perguntou um diretor de criação a seus criativos.

Era o sinal de que melhor seria voltar ao trabalho. Sem reclamar.

Afinal, Feira Livre era uma aldeia politicamente correta. Lá, todo mundo vivia bem. Cuidando do que era seu.

Nenhum comentário:

Postar um comentário