quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O culpado é o redator!

Ilustração: Letícia Sadocco

Era uma noite quente e seca na cidade de Santa Alegria. As ruas pegavam no sono como se ouvissem uma cantiga da lua. Os homens repousavam suas barrigas cheias em colchões magros, tingidos de manchas escuras. As mulheres sonhavam alto, frescas sob tetos baixos e tão quentes quanto a raiva e a febre. A vida estava calma e silenciosa. Como a morte que se fazia implacável em uma das casas da cidadela.

Na manhã seguinte, a polícia encontrou o cadáver. Uma mulher de cinqüenta anos, sentada à mesa de jantar. O rosto afundado em um prato de macarrão indicava o que parecia óbvio. Ela tivera um ataque cardíaco durante a refeição e, sem socorro, morreu por ali mesmo.

Mas os guardas também avistaram ao lado do corpo uma carta, manuscrita em caprichada caligrafia, com o seguinte conteúdo:

“Querida mamãe. Aqui está o seu presente de aniversário: um saboroso macarrãozinho com pedaços de quiabo. Nunca vou esquecer, a dedicação com que a senhora sempre me obrigou à comer esse legume na infância. Coma tudo. Parabéns e um beijo do seu filho querido. Tibúrcio.”

Era preciso averiguar a história.

- Mandem interrogar esse Tibúrcio – ordenou o comissário.

O rapaz sabia de nada. Um inocente! Era só um coitado amoroso que havia perdido a própria mãe. O caso estava encerrado.

Mas a história foi parar nos ouvidos do detetive mais esperto de Santa Alegria. Manolo Dálmata. Um mestre da investigação, gênio perspicaz de enorme poder dedutivo, obtuso farejador e professor de português aposentado.

Sempre acompanhado de seu fiel assistente, Coquinho, um anão de cabelo vermelho, Manolo examinou o bilhete e sentenciou:

- Podem prender o filho.

O incrédulo Coquinho retrucou.

- Mas já, chefe? Como tem tanta certeza?
- Elementar, meu caro Coquinho. Um sujeito que põe acento grave em preposição antes de verbo é capaz das piores atrocidades. Inclusive de engavetar a própria mãe.

Um policial boquiaberto observava atentamente.

- “À comer” é uma incorreção grosseira e cruel, meu caro Coquinho. Fruto de uma mente doentia o suficiente para enxergar uma crase onde ela não existe. Coisa de assassino – continuava o detetive.

- Mas o que é uma crase, mestre? – pergunta o anão avermelhado.
- Coquinho, uma crase é uma fusão entre uma preposição e um artigo.
- Piorou...
- Elementar, caro baixinho. Você também fugiu da escola.

Pouco antes de se despedir dos policiais, Manolo Dálmata os orientou cuidadosamente.

- Não se deixem enganar. Prendam logo o elemento. É um assassino afeito a requintes de crueldade.
- E como é que você sabe, ó, Sherlock?
- Vejam como o inescrupuloso esfaqueou uma das frases do bilhete, separando com afiada vírgula o verbo “esquecer” do complemento “a dedicação...”.
- Ohhhh!!!

Agradecida, a polícia saiu a vasculhar a cidade de Santa Alegria atrás do assassino. Nem sinal. O filho da mãe havia fugido.

Dálmata se pôs a caminhar pelas ruas santalegrenses enquanto matutava sobre o paradeiro do bandido. Amante da propaganda, ele gostava de observar os outdoors locais. Entre uma e outra frase copiada da concorrência lá estava a pista, impressa em um poluído anúncio de varejo. “Preços À partir de...”

Fim do mistério. Depois foi só o trabalho de descobrir o nome e o endereço da agência que havia cometido tal violência contra a Língua Portuguesa. Os policiais seguiram para lá e pronto. Encontraram Tibúrcio, o filho que matara a própria mãe. Ele era o redator da empresa.

Santa Alegria voltou a sorrir com a prisão do criminoso. A noite se encheu de pessoas dormindo tranquilas. Sem filho envenenando mãe, sem acento grave bolinando gravemente preposições solitárias ou sem vírgula ilegal dilacerando verbo, sujeito, predicado e complemento.

Festejado como herói, Manolo Dálmata acendeu seu cachimbo e partiu a caminhar pelas ruas da cidadela, gramática da Língua Portuguesa sob o braço, sempre à espera do próximo crime. Foi quando viu seu fiel assistente chegar esbaforido.

- Mestre! Assaltaram a padaria. Decerto o bandido aproveitou que hoje tem MENAS polícia na rua, invadiu o estabelecimento e limpou o caixa!

- Coquinho?

- Sim, mestre.

- Devolva já o dinheiro!